QUE FAZER?
“…CAMARADA!” A magia de uma só palavra…
Os factos de que hoje dou conhecimento, ocorreram precisamente há 47 anos, a 1 de Fevereiro de 1975. São factos que, para evitar leituras perversas, não incluí deliberadamente em “REFORMA AGRÁRIA – A Revolução no Alentejo”…
Faço-o hoje em “O TEU, O MEU, O NOSSO, DOS TRABALHADORES, DA REVOLUÇÃO AGRÁRIA” porque ele encerra algumas lições políticas que poderão ser úteis para quem sobre eles quiser fazer alguma reflexão.
Faço-o hoje porque, como então, estamos numa situação complexa, difícil, em que, para muit@s, certezas de ontem podem ser incertezas de hoje, em que mesmo os melhores de entre nós podem errar nos seus juízos e avaliações, logo, numa situação que exige muita serenidade e, sobretudo, muita confiança entre TOD@S @S camaradas, pois, estou disso convicto, todas as decisões tomadas, pela Direcção do Partido, certas ou erradas, são sempre tomadas na convicção de que são as decisões melhores para servir o que a todos une, a luta permanente, pelos ideais da LIBERDADE- DEMOCRACIA-SOCIALISMO.
Errar não é crime e até os melhores podem errar…
Como dizia o Camarada Álvaro, mais do que auto-críticas e flagelos na praça pública, o importante é aprender nos erros e não voltar a comete-los.
Por essa razão, mais do que entrar em acusações e disputas entre Camaradas sobre o acerto ou desacerto das decisões tomadas, mais do que as estapafúrdias divisões entre bons e maus comunistas, entre reformistas ou revolucionários, o que se impõe fazer é perceber o profundo significado que a palavra “Camarada!” deve ter para quem se afirma Comunista e, naturalmente, chamar todo o Partido à reflexão necessária, que se impõe fazer sem dramatismos, sem exaltações e muito menos com desesperos que sempre foram maus conselheiros.
Até lá é preciso acabar com todas as actividades fraccionárias e projectos cisionistas…
À Direcção do Partido de tomar em mão a organização da reflexão necessária e urgente que a situação reclama…
O Povo deixou um sinal claro que quer ser governado à esquerda porque como de esquerda lhe foi apresentada a solução da geringonça… as diferentes manipulações mediáticas e institucionais da crise desnecessária, criada por Marcelo e António Costa, penalizou a esquerda consequente e facilitou a maioria absoluta do PS. A nós agora a arte e o engenho para, COM CONFIANÇA, gerir, na nova situação criada, este facto objectivo, para afirmar e alargar o apoio ao projecto/programa alternativo de que dispomos para a sociedade portuguesa.
Há quem subestime as eleições… e a intervenção do Partido nas instituições… Marx e Lenine, e no nosso País o PCP e o Camarada Álvaro Cunhal, que eu saiba não o faziam… mas isto é conversa para outro momento…
Por agora fiquemo-nos pela lealdade, frontalidade e confiança que deve estar sempre presente na relação entre Camaradas. Assim o exige a justa luta que travamos há um século contra a exploração e opressão do nosso Povo, pela LIBERDADE- DEMOCRACIA-SOCIALISMO.
Que a magia da palavra de FRANCISCO MIGUEL a tod@s motive…
força “…CAMARADA!”

Ao Francisco Miguel Duarte. O Camarada “Chico Miguel”. Esse extraordinário Camarada, que, sob o seu corpo franzino e de baixa estatura, albergava o Homem Grande, Revolucionário exemplar, que, por amor à Liberdade, à Democracia, ao nobre ideal comunista de uma sociedade mais justa, fraterna e solidária, ideal que desde muito jovem abraçou e pelo qual lutou toda a sua vida, sacrificou constantemente a sua própria liberdade, legando-nos um testemunho ímpar de coragem, determinação, coerência e confiança na luta.
Dotado de uma vontade férrea, testada no muro de silêncio com que respondeu às brutais torturas que lhe foram infligidas nas prisões fascistas, tentativa vã de o levar a denunciar os seus camaradas e as actividades do Partido, o “Chico Miguel” foi, continua a ser, para mim, no fundamental, um exemplo do que é um Comunista. Humanista, modesto, de uma lealdade a toda a prova. Revolucionário, sempre.
“Eu não estou velho, o que tenho é muitos anos de experiência”. Resposta pronta e firme à camarada que na Soeiro Pereira Gomes fez o comentário “Ai o camarada Chico está tão velhote”.
Tinha então ultrapassado os 80 anos. Um Revolucionário não envelhece, acumula anos de experiência e de conhecimento. Um Revolucionário como o “Chico” nunca se esquece. A história que se segue foi o princípio de uma longa, profícua e sã camaradagem que duraria até ao último dia da sua vida.
“…CAMARADA!” a magia de uma só palavra…
Quando o “António” (pseudónimo da clandestinidade, do por nós batizado “o Bigodes”, de nome real Edgar Correia, então responsável pela organização do Partido em Beja, me convocou para ir ao Centro de Trabalho reunir com um dirigente do Partido, longe de mim estava a ideia de que quem desejava falar comigo era, nada mais, nada menos, que Francisco Miguel. Um histórico membro do Comité Central. Um mito vivo da resistência, da luta pela liberdade e pela democracia. 22 anos passados nas cadeias fascistas. Quase tantos quantos eu tinha então de vida. Testemunho vivo da coragem e da capacidade de um ser humano resistir às mais bárbaras torturas físicas a que recorriam os mais refinados torcionários da tenebrosa polícia política de Salazar, a famigerada e de triste memória PIDE/DGS.
Em vésperas da manifestação distrital que ia ter lugar no dia seguinte, 2 de Fevereiro de 1975, frente às piscinas, em Beja, promovida pelo Sindicato a que então presidia, manifestação aprovada na célebre Assembleia Distrital de Delegados Sindicais de 26 de Janeiro, a oito dias do 1º Encontro dos Trabalhadores Agrícolas do Sul que iria ter lugar em Évora, por iniciativa do Partido, depressa a surpresa deu lugar a uma secreta e enorme satisfação.
A presença do “Chico Miguel” e a sua disponibilidade e vontade de comigo falar não podia significar outra coisa que não fosse o seu apoio à nossa luta. Decerto que iríamos falar sobre a manifestação, a intervenção e a declaração construída no Partido, que nela pensávamos aprovar, bem como sobre a histórica decisão de “Dar início à Reforma Agrária”, entusiasticamente aprovada seis dias antes na Sociedade Capricho Bejense e aclamada sob a velha consigna do PCP “A TERRA A QUEM A TRABALHA”.
Feitos os cumprimentos da praxe, instalados frente a frente na pequena sala de trabalho do “António” e com a presença deste, depressa compreendi que era de Reforma Agrária que íamos falar.
Aliás, a primeira questão, não podia ser colocada de forma mais directa e precisa, nem deixar qualquer margem para dúvidas.
“Camarada. Tu sabes o que é a Reforma Agrária?” Foi desta forma incisiva e num tom particularmente sério que o Chico iniciou a conversa. Surpreso pela forma e pelo tom, mas tranquilo, lá respondi, com alguma timidez, que “sim”. Que era um dos pontos mais importantes do Programa do Partido, um pilar da revolução democrática e nacional e que consistia na liquidação do latifúndio e na entrega da terra a quem a trabalha.
Palavras não eram ditas e já a segunda pergunta me era colocada, no mesmo tom sério e incisivo. “E tu sabes, camarada, como se faz a Reforma Agrária?” Mais uma vez, mas com crescente surpresa, lá respondi que sim. Que era através de uma lei que expropriaria os latifúndios e que determinaria as condições da entrega das terras expropriadas aos trabalhadores e aos pequenos agricultores.
“E tu sabes, camarada, quem faz e aplica essa lei?” Foi a pergunta que se seguiu no imediato. Atónito, perante o silêncio do “António”, sem compreender muito bem onde o “Chico” queria chegar, lá dei a minha resposta, ou seja, “quem faz e aplica a lei é o governo”.
Ainda a palavra governo ecoava no ar e já o “Chico” me bombardeava com nova pergunta. Nada mais, nada menos, que: “E tu achas, camarada, que vocês são governo para decidir dar início à reforma agrária e fazer o que andam a fazer?”
Olhei de forma interrogativa para o “António” mas o seu mutismo depressa me fez compreender que era a mim que cabia responder. A crítica, essa, não podia ser mais evidente. Não compreendi a razão de tal crítica. Muito menos a aceitei. Senti que crescia em mim a revolta. Afinal, todas as acções que vínhamos desenvolvendo, desde a 1ª ocupação do Monte do Outeiro com 775 hectares, a 10 de Dezembro de 1974, às ocupações que se lhe seguiram, Corte Condença- 1520 hectares em Quintos, Herdade da Caiada-1600 hectares em Srª da Graça dos Padrões, Insuínha-900 hectares em Pedrógão, Medinas-293 hectares, Vale Gonçalinho-250 hectares em Entradas, Assentos e anexas-hectares em Cuba, Donas Marias-1375 hectares em Santo Aleixo da Restauração, Quintinhas e anexas-1630 hectares em Odivelas, até à histórica decisão de “Dar início à Reforma Agrária”, tomada com indescritível entusiasmo na Assembleia Distrital de Delegados do Sindicato, a 26 de Janeiro de 1975, tudo, mas tudo, havia sido colocado e minuciosamente discutido e considerado com os principais responsáveis pela direcção política do Partido em Beja.
Primeiro entre nós, os comunistas que integrávamos a direcção do Sindicato e de quem, efectivamente, partiu sempre a iniciativa. Depois com os responsáveis pelo acompanhamento do trabalho do Partido no distrito, o Edgar Correia e o João Honrado a quem cabia, naturalmente, a função de informar e ouvir os organismos superiores sobre as propostas e decisões que íamos tomando. Podia não haver unanimidade de pensamento em relação ao caminho que vínhamos trilhando, sentimo-lo bem em diferentes momentos nas hesitações do camarada da direcção do sindicato que era membro da Direcção da Organização Regional do Alentejo do Partido, de que era responsável o camarada António Gervásio, membro da Comissão Política do Comité Central, mas a verdade é que em momento algum veio da Direcção do Partido qualquer orientação em sentido contrário. O que fazíamos estava estampado e valorizado nas páginas do jornal “O Camponês”. Páginas que eram redigidas pelos camaradas mais responsáveis no distrito, o “António” e o João Honrado, e cujo Diretor era o próprio camarada António Gervásio.
Podia ter evocado tudo isso. Devia talvez ter começado por aí. Mas não foi com isto que confrontei o Chico. Confrontei-o, isso sim, com a acção reaccionária do latifundiário e assumido fascista José Gomes Palma. Com a arrogância e prepotência deste. Com o incumprimento dos contratos assinados, primeiro para o concelho de Beja e depois para o distrito. Com o não pagamento dos salários. Com o despedimento colectivo dos trabalhadores que tinha ao seu serviço. Com a sua assumida sabotagem à produção. Com o exemplo de todos os outros que teimavam em não aceitar Abril. Que sabotavam o processo produtivo. Que sonhavam com o regresso ao passado. Passado que ele, “Chico”, melhor que ninguém conhecia e com o qual em momento algum se conformara ou pactuara…
Lembrei-lhe as sucessivas exposições dirigidas pelo Sindicato ao governo a denunciar as situações graves que vivíamos no distrito e a falta de uma resposta pronta e firme para lhes fazer face. Fi-lo de forma emotiva e exaltada pois achei a sua critica injusta e desajustada.
Perguntei-lhe como reagiria ele, Francisco Miguel, dirigente do Partido, lutador incansável contra o fascismo, se fosse ele a ter que responder à situação. Baixava os braços e aguardava uma intervenção do governo que nunca mais vinha? Deixava as mãos livres a gente assumidamente fascista como o era José Gomes Palma? Ou assumia o risco, tal como nós o havíamos feito? Afinal, era a democracia e a própria Liberdade que estavam em jogo.
Atrapalhou-se o Chico. Ele sabia que nós tínhamos razão. Mas também sabia, tal como nós sabíamos, porque o havíamos considerado, que a decisão de “Dar início à Reforma Agrária” tinha sido uma decisão arriscada, uma decisão que poderia ter provocado uma onda repressiva e de instabilidade política quer no seio do governo quer entre os militares, num momento em que a orientação principal do Partido era a consolidação das liberdades fundamentais havia tão pouco tempo conquistadas. Era a defesa e consolidação de um regime democrático, no quadro do qual a realização de uma reforma agrária era condição.
Era igualmente o risco da nossa acção ser interpretada como uma violação da palavra dada pelo Partido, Partido de uma só palavra.
Seguiu-se um embaraçoso silêncio. Estático e impassível o “António”. Expectante eu. Sério, mas sobretudo surpreso, o “Chico”. Não esperava a minha explosiva reação e, claramente, estava sem saber o que me responder.
Ainda hoje vejo o Chico levantar-se lentamente, por detrás da secretária a que estava sentado. Olhos fixos nos meus. Braço direito erguido. Indicador bem próximo de mim. E a resposta inesquecível.
“Olha CAMARADA!… Sabes o que tu és?… Sabes?… O que tu és… é um grande MRPP”.
Vieram-me as lágrimas aos olhos. Tristeza e revolta misturadas. Levantei-me e saí. No bolso a intervenção que com entusiasmo havia escrito para a manifestação que iria ter lugar no dia seguinte e que se esperava grandiosa, como o foi. Deixar tudo. Sindicato e Partido. Regressar à terra que então trabalhava. Naquele momento era o meu único pensamento.
Foi mais forte, e sobrepôs-se a tudo o resto, aquele “Olha CAMARADA.” Afinal era como CAMARADA que era considerado por aquele que, para mim, então jovem e inexperiente Comunista, era há muito um mítico Herói da resistência anti-fascista, da luta pela Liberdade e a Democracia.
No dia seguinte, os milhares de trabalhadores em Beja. 40 mil, segundo a imprensa. A maior concentração de sempre. O grito uníssono: AVANTE COM A REFORMA AGRÁRIA – A TERRA A QUEM A TRABALHA.
No final, o abraço… forte, sincero, fraterno, solidário, amigo, daquele Homem franzino, mas de bem temperado e inquebrável aço. A alegria estampada no rosto e as palavras simples, que para sempre me marcaram, que tudo diziam e que selaram uma indestrutível e fraterna amizade: “Então, CAMARADA, no próximo Domingo lá nos encontramos em Évora”.
Lá nos encontrámos. Fui relator da experiência das ocupações no distrito de Beja. Ocupações que a Conferência consagrou como importante e inovadora forma de luta.
A Reforma Agrária estava na ordem do dia. Assim o afirmaria Álvaro Cunhal no seu discurso de encerramento da Conferência, lançando a marcha imparável para uma etapa superior, que iria conduzir à concretização da mesma, ao seu reconhecimento pela Lei e posterior consagração, sem votos contra, na Constituição da República Portuguesa.
A palavra a Álvaro Cunhal, Secretário Geral do PCP:
“Camaradas:
(…)
A Reforma Agrária surge natural como a própria vida, aparece como resultado da necessidade objectiva de resolver o problema do emprego e da produção, como solução indispensável e única.
Os latifúndios têm sido e são a miséria, o atraso e a morte. A entrega da terra a quem a trabalha significa a própria vida, vida para os trabalhadores desempregados e seus filhos, vida para a agricultura abandonada, sabotada pelos grandes agrários e pelos grandes capitalistas.
VIVEMOS UM MOMENTO HISTÓRICO NOS CAMPOS DO SUL. PELAS MÃOS DOS TRABALHADORES, A REFORMA AGRÁRIA DEU OS PRIMEIROS PASSOS.
(…)
Na sua luta abnegada e heróica, os trabalhadores agrícolas do Sul, como todos os trabalhadores portugueses, poderão contar sempre, nas horas boas e nas horas más, com o Partido Comunista Português.”
Assim foi…nas horas boas do avanço tumultuoso, criativo e exaltante da Revolução de Abril e nas horas más da “Contra Reforma Agrária – terror, destruição e morte no Alentejo”, que conduziu ao criminoso assassínio da mais bela das Conquistas de Abril…
O PCP tem razões de sobra para se orgulhar do seu papel na luta pela “REFORMA AGRÁRIA – A Revolução no Alentejo” mas não deverá ter menor orgulho pelo seu papel insubstituível e determinante na resistência e luta em sua defesa…PELA LIBERDADE – DEMOCRACIA – SOCIALISMO.
Assim foi com a profunda e fraterna amizade que me ligou para sempre ao Camarada Francisco Miguel, até ao momento da sua partida…



